Olha o tempo...

quarta-feira, 4 de março de 2009

FRANÇA - Os sem-papéis também lutam

Reportagem da revista Le Monde diplomatique Brasil do dia 24 de junho de 2008.
Alvos de perseguições cada vez mais freqüentes em toda a Europa, os imigrantes não-regularizados articulam uma onda de greves na região de Paris. Muitos já não temem aparecer em manifestações públicas. Seu trunfo: o continente que hipocritamente os persegue não pode viver sem eles

Olivier Piot
Na França, a passeata de 1º de maio mostrou neste ano uma face inédita. Agitando faixas de diversas organizações, cerca de cinco mil trabalhadores “sem- documentos” dominaram o desfile. Malineses, senegaleses, marfinenses... Até então, estes rostos negros da África eram vistos apenas em reuniões reservadas aos estrangeiros. Mas de repente, eles se convidaram para a manifestação mais tradicional e simbólica da classe operária francesa.
Quem são esses milhares de homens e mulheres que reivindicam sua regularização, entre os quais cerca de seiscentos, apoiados pela central sindical CGT, promoveram recentemente greves em uma dúzia de empresas na Île-de-France [1]? Empregados em setores como hotelaria, restaurantes, construção civil, segurança, limpeza, agricultura, ou trabalhando como empregados domésticos, cozinheiros, sucateiros etc., eles têm como denominador comum o fato de serem todos assalariados. Dispõem de contratos e constam de folhas de pagamento, pagam seus impostos e suas contribuições salariais. Têm em comum também o método para conseguir isso. “Os patrões não controlam a contratação”, revela Konaté, um trabalhador malinês da construção. “Basta mostrar os documentos de um primo ou de um amigo ou até documentos falsos, comprados por 500 ou mesmo 300 euros”.
Como aceitam tal situação? “Somente por razões de sobrevivência. De um modo ou de outro, um grande número de estrangeiros trabalha. As poucas centenas de grevistas da Île-de-France representam a linha de frente de milhares de outros”, explica Jean-Claude Amara, responsável pela associação de defesa de direitos Droits Devant!. Segundo dados de certas associações – como o GISTI, o Cimade e o UCIJ –, existem atualmente na França de 300 a 600 mil trabalhadores sem documentos.
Embora os salários declarados por esses trabalhadores (entre 1000 e 1400 euros por mês) aproximem-se do SMIC (Salaire Minimum Interprofessionnel de Croissance – Salário Mínimo Interprofissional de Crescimento) [2], eles escondem um número expressivo de horas extras não remuneradas. A ponto de certos trabalhadores sem-documentos estimarem trabalhar por 3,80 euros a hora, durante semanas que podem atingir 60 horas. “O patronato sabe bem que os trabalhadores estrangeiros são obrigados a aceitar condições de trabalho que os franceses não aceitariam, observa Gérard Filoche, inspetor do trabalho. Horas não remuneradas, demissões abusivas, não-pagamento de demissões e indenizações, trabalho de fim-de-semana e noturno: estamos em setores em que o direito de trabalho é totalmente desprezado.”
Hipocrisia: os sem-papéis têm registro nas empresas, pagam impostos, contribuem com fundos sociais. Mas são mantidos sob constante ameaça, para que aceitem condições de trabalho aviltantes
A Delegação Interministerial de Luta contra o Trabalho Ilegal (Dilti) estima que a proporção de infrações caracterizadas como “emprego de estrangeiros sem autorização de trabalho” quase dobrou na França, entre 2004 e 2006 (de 8,4% para 14,8%). Segundo uma pesquisa realizada no setor de hotelaria e restaurantes, casos de trabalho ilegal foram constatados em 25% dos 7 123 restaurantes investigados e a proporção passa a 61% na Île-de-France [3]. “Nós vivemos a pura lógica da flexibilidade e da rentabilidade, conclui Gérard Filoche. “E a globalização, desta vez, não tem nada a ver com isso, pois os setores implicados são sustentados por grupos franceses, que investem em território nacional, sem concorrência internacional”.
Para Jean-Claude Amara, essa “exploração vergonhosa” repousa na “hipocrisia geral”: “o Estado recebe os impostos dos sem-documentos, os fundos sociais beneficiam-se com suas contribuições salariais e os patrões utilizam seus braços com perfeito conhecimento de causa”. Vários empregadores, sob o foco dos holofotes, declararam ignorar que alguns de seus empregados tivessem documentos falsos. “Isso pode valer aqui ou ali, para alguns pequenos patrões isolados”, reconhece Patrick Soulinac, dirigente da CGT em Lyon. “Mas a grande maioria sabe muito bem. Nós temos dossiês nos quais um mesmo trabalhador aparece nas folhas de pagamento com até quatro nomes diferentes”.
Francine Blanche, secretária da CGT, estima que essa tendência ultrapassa a noção de “escravidão moderna”. Os trabalhadores sem-documentos, explica ela, são “os deslocados de empresas não deslocáveis” [4]. Como não é possível deslocar um restaurante, um canteiro de obras ou um posto de vigia para países onde se praticam salários vis, o patronato recria, em solo europeu as condições de um mercado de trabalho de baixo custo, recrutando trabalhadores fragilizados por seu “status” de sem-documentos. Esta lógica do “deslocamento sem mudar de lugar” camufla um “trabalho clandestino” que caracteriza uma minoria não desprezível dos assalariados franceses.
O recurso a esses “deslocados” aumenta e se diversifica. Um novo mecanismo é a chamada Prestação Transnacional de Serviços (PTS). Consiste em utilizar, na França, trabalhadores assalariados por empresas estrangeiras, que os enviam para realizar um serviço. Em sua pesquisa sobre as condições de trabalho no setor da construção e obras públicas, Nicolas Jounin menciona empresas polonesas, portuguesas e de outras nacionalidades que enviam mão-de-obra para trabalhar na França [5]. E a especialista em ciências sociais e políticas Béatrice Mesini aponta o caso de imigrantes equatorianos, regularizados na Espanha e enviados para a França como trabalhadores agrícolas temporários [6]. Para os patrões, essa forma de “subcontratação transnacional” apresenta várias vantagens: o custo da mão-de-obra é menor; os salários são pagos pelo empregador estrangeiro, que, em seu país, recolhe encargos sociais geralmente mais baixos; e o trabalhador não tem necessidade de documentos franceses para trabalhar na França.
Após quase vinte anos, as lutas dos imigrantes estão num novo patamar. E um regulamento baixado por Sarkozy abriu a brecha que faltava para a deflagração das greves atuais
Se essas mudanças profundas acontecem em certos setores da economia francesa há vários anos, por que a mobilização dos sem-documentos só ocorreu em 2008? “É uma questão de maturidade, comenta Violaine Carrère, coordenadora de pesquisas do GISTI. “Após a luta dos estrangeiros, aos quais foi negado o direito de asilo na metade dos anos 1980, nós vivemos as ocupações das igrejas (Saint Bernard etc.) no final dos anos 1990”, recorda. “Esses dois movimentos permitiram substituir a imagem do ‘imigrante clandestino’ pela noção de ‘trabalhador sem-papéis’, semelhante à de ‘sem-teto’ ou ‘sem-trabalho’. No verão de 2006, o movimento conduzido pela Rede Educação sem Fronteiras (RESF) permitiu aos estrangeiros não serem mais vistos como silhuetas anônimas e inquietantes. A luta contra a expulsão das crianças das escolas deu rostos, nomes e histórias aos estrangeiros. Com a mobilização dos trabalhadores sem-documentos, os franceses deram-se conta de que os estrangeiros trabalham e quitam todas as suas obrigações como assalariados”.
Um outro fator explica esta última transformação da luta dos imigrantes por seus direitos. “No verão de 2006, os novos regulamentos do governo mudaram a situação”, observa Raymond Chauveau, secretário-geral da CGT em Massy e iniciador do movimento. Ao suprimir, em 1974, o direito ao título de estadia baseado no trabalho, o Estado francês incitou os estrangeiros a procurarem a regularização por meio do recurso ao direito de asilo, às situações familiares (1978) ou ao status de estudantes (1993). Há dois anos, foi reintroduzida a possibilidade de se obter um visto de estadia (permissão para morar e trabalhar na França) com base no trabalho (a lei relativa à imigração e à integração, de 24 de julho de 2006). Nicolas Sarkozy contava vincular esse direito à sua doutrina de “imigração selecionada”. Ele então fixou imediatamente em 26 mil a cota de imigrantes a serem expulsos em 2008 (cerca de mil a mais que em 2007) e anunciou o aumento dos centros de detenção.
Em julho de 2007, o cerco se fechou. Um decreto do governo obrigou os empregadores a indicar seus empregados sem-documentos, sob pena de multa de 15 mil euros e cinco anos de prisão. O texto criou comoção. Mas, desta vez, no meio patronal. “Eu vi chegarem pequenos empresários assustados nos postos da organização Droits Devant!”, comenta Jean-Claude Amara. De seu lado, a CGT registrou as queixas de milhares de sem-documentos demitidos das empresas. Em 20 de novembro de 2007, a Lei Hortefeux (relativa ao controle da imigração, à integração e ao asilo) indicou uma lista de 150 serviços ditos “sob pressão” (aqueles onde há poucos candidatos às vagas). Ela foi seguida por uma circular, de dezembro de 2007, que limitou a somente 30 os serviços reservados aos imigrantes de países não pertencentes à União Européia. Enfim, uma nova circular, de janeiro de 2008, precisou, preto no branco, que a regularização era possível, a partir da apresentação das folhas de pagamento dos assalariados empregados nos serviços “sob pressão”.
O governo esperava que o patronato, pressionado pelo decreto de julho de 2007, apresentasse, ele próprio, os relatórios exigidos. Mas a CGT e o Droits Devant! aproveitaram a a brecha. Em fevereiro último, uma greve foi organizada em um restaurante parisiense. Sete cozinheiros foram regularizados. No final de abril, o sindicato entrou com mil pedidos de regularização nos departamentos da Île-de-France. Dez dias mais tarde, cerca de cem grevistas obtiveram ganho de causa.
Pego no contapé, o governo ensaia endurecer. Mas a França já não pode prescindir dos imigrantes, e suas lutas podem conquistar uma política menos arbitrária de regularizações
Ou seja, esse movimento incomoda. Não apenas o governo, que pensava ter resolvido o assunto da imigração. Mas também uma parte da CGT, pressionada pela mobilização e acusada por um grupo de sem-documentos de só ter entregue mil pedidos de regularização.
Os sem-documentos são determinados. “Nós não temos muita coisa a perder”, observa Bamba, grevista da empresa Millenium, de Igny. “Ao participar de reuniões ou fazer greve, nós sabemos o risco que corremos. Todo sem-papéis que sai da sombra se expõe e pode ser expulso a qualquer momento. Mas há anos saímos de casa, todos os dias, com medo de sermos presos e mandados de volta para nosso país. Então, à luta!”
Como era de esperar, a política em relação aos estrangeiros endureceu com Sarkozy. Hostil a qualquer forma de “regularização maciça”, o governo fechou-se em sua posição: os pedidos de regularização serão tratados “caso a caso”, em prejuízo dos que protestam e de alguns responsáveis de federações patronais. Mas essa posição não ajudará Sarkozy a sair do impasse. “É uma regra que alimenta o arbítrio mais impreciso, explica Patrick Peugeot, dirigente da Cimade. “Diante das necessidades reais da economia francesa, o Estado deverá, cedo ou tarde, optar pela regularização sobre critérios transparentes” [7].
traduções deste texto >> Esperanto — Internaj delokitoj فارسى — «کار به خارج منتقل شده» اما در داخل کشور
[1] A Província de Île-de-France é uma das 26 regiões administrativas da França. Nela se localiza a cidade de Paris.
[2] O SMIC é, na França, a remuneração mínima que a lei garante ao trabalhador. Em 1º de maio de 2008, o SMIC subiu para 8,63 euros por hora (valor bruto), ou 1308,88 euros por mês (valor bruto sobre uma base de 35 horas semanais).
[3] “Trabalho não declarado em hotéis e restaurantes”, Acoss-Urssaff, Paris, 16 de agosto de 2007.
[4] L’Humanité, 16 de abril de 2008.
[5] Nicolas Jounin, Chantier interdit au public, Paris, La découverte, 2008.
[6] Béatrice Mesini, “Gestion de la main d’oeuvre et segmentation statuaire des saisonniers migrants dans l’agriculture européenne”, Londres, Simpósio do JIST, no prelo.
[7] Em 17 de abril de 2008, André Daguin, presidente da União da Indústria Hoteleira, pediu a regularização de cinqüenta mil sem-documentos.

AMÉRICA LATINA - México, polícia dos Estados Unidos

Reportagem da revista Le Monde diplomatique Brasil do dia 12 de Dezembro de 2007.
O presidente Bush deu mais um passo em seu projeto de empurrar a fronteira norte-americana para o sul e de transferir seus conflitos para outros territórios. A “Iniciativa Mérida”, um programa de cooperação contra o narcotráfico, também aponta para a imigração ilegal e a criminalização dos protestos sociais
Luis Hernández Navarro
O líder norte-americano pediu ao Congresso um orçamento de 550 milhões de dólares a título de “financiamento de emergência para outras atividades críticas de segurança nacional”, entre as quais incluiu a “assistência vital a nossos parceiros no México e na América Central, que estão trabalhando para derrotar os cartéis da droga, combater o crime organizado e impedir o tráfico. Isso é prioridade máxima nos Estados Unidos e o Congresso deve financiá-lo sem demora” [1].
O pedido veio apresentado como anexo de uma proposta de 46 milhões de dólares para sustentar as intervenções militares no Afeganistão e no Iraque. Tudo isso é emblemático: para Washington, as relações com o México são mais uma peça do quebra-cabeça bélico global. A guerra continua sendo o poder constituinte a partir do qual se quer traçar a nova geografia planetária. O método também antecipa como vão ser conduzidas as coisas: o anúncio da iniciativa foi unilateral, apesar de se tratar de um programa binacional.
O projeto de cooperação foi batizado de “Iniciativa Mérida”, ainda que durante meses tenha se falado da proposta de colaboração como “Plano México”, um título que evocava, negativamente, o Plano Colômbia. A idéia é apresentá-lo assim como resultado da reunião efetuada na cidade mexicana de Mérida (Yucatán) entre os presidentes dos Estados Unidos e do México, em março de 2007.
Embora nos Estados Unidos a notícia tenha tido pouca repercussão, no México ela provocou uma grande agitação da mídia. Legisladores americanos se queixaram de não ter sido consultados. As câmaras de senadores e deputados do México convocaram a chanceler para que explique os compromissos assumidos pelo governo mexicano.
Colheita sangrenta
A cabeça cortada de Mario Núñez Magaña, comandante da Polícia Federal Preventiva de Acapulco, apareceu na porta dos escritórios da Secretaria de Administração e Finanças do governo de Guerrero. Era dia 20 de fevereiro de 2006. Um bilhete advertia: “Para que aprendam a respeitar”. Não foi o único caso de decapitação da temporada. Cabeças sem corpo têm aparecido em outras cidades mexicanas.
O espetáculo macabro é parte da guerra entre os mais poderosos cartéis da droga no México, que disputam entre si os pontos e rotas do tráfico de drogas. Suas principais vítimas são assassinos de aluguel ou policiais a serviço das organizações criminosas.
Segundo o governo mexicano, existem sete grandes grupos de narcotraficantes. Os mais importantes, do Golfo, de Sinaloa e de Juárez, estão implantados em quase todo o território nacional. Recentemente, firmaram alianças entre si. O cartel de Juárez fez um acordo com o do Golfo. Vários outros mais se associaram na chamada “La Federación”.
Entretanto, a violência é incontrolável. Nos primeiros dez meses de 2007, foram realizadas 2.113 execuções. Em 2006, o número de mortos também havia superado os 2 mil. As cifras deste ano compreendem o assassinato de 220 membros das forças de segurança. Cinco estados, Guerrero, Nuevo León, Michoacán, Sinaloa e Sonora, concentram os maiores índices. As facções têm reciclado velhos cultos para honrar seus mortos. Monterrey, capital do rico estado de Nuevo León, sedia uma das mais sanguinolentas lutas entre os cartéis do Golfo e de Sinaloa. As execuções, tiroteios e seqüestros proliferam. Há três meses, a dezesseis quilômetros da fronteira com os Estados Unidos, na estrada que vai dessa cidade a Nuevo Laredo (Tamaulipas), apareceram 21 altares dedicados a Santa Muerte. Nas capelas vêem-se flores, mensagens, charutos, garrafas de bebida, terços, velas acesas, santinhos, fotografias, quadros da Santísima Muerte [2].
Dinheiro ou chumbo
O México é um importante produtor de drogas e território de passagem para a distribuição nos Estados Unidos. O país é o principal fornecedor de maconha e um dos mais importantes provedores de metanfetamina. Embora sua produção de heroína seja relativamente pequena, ele abastece parte importante do consumo de seu vizinho ao norte. O Departamento de Estado norte-americano avalia que 90% da cocaína vendida no país chega através do México.
A cocaína é vendida na Colômbia a 2.500 dólares o quilo. No México, alcança um preço de 8.500 dólares. Ao atravessar a fronteira com os Estados Unidos, sobe para 12 mil dólares. Nos mercados de Nova York e Los Angeles chega a 40 mil dólares.
O narcotráfico no México mudou de cara nas últimas décadas. Agora, os cartéis não só buscam proteção, como também poder político. Se antes negociavam sob uma condição de subordinação à autoridade, hoje são capazes de estabelecer regras em questões econômicas, sociais e políticas. Em 1989, produziu-se uma mudança importante no modelo de relação entre os cartéis dominantes da droga — os de Cali e Medellín — e seus parceiros mexicanos. Até então, os colombianos pagavam por proteção com dinheiro. Daí em diante, o pagamento passou a ser feito com droga. Modificou-se assim a dinâmica de operação dos mexicanos, que não contavam com muito pessoal em sua infra-estrutura. A necessidade de comercializar a droga os fez crescer. Desse momento em diante, o México deixou de ser um país de tráfico para converter-se também em país de consumo [3].
Os cartéis colombianos e mexicanos lavam atualmente no México entre 8 e 25 bilhões de dólares [4]. A ganância os obrigou a pôr em prática um novo esquema de lavagem, investindo em uma grande quantidade de negócios. O dinheiro do narcotráfico em atividades lícitas levou a que diversos setores da sociedade dele se beneficiassem, com melhores preços e condições de aporte financeiro. A fartura gerou redes de cumplicidade. Segundo o National Drug Intelligence Center, quem domina o mercado de drogas nos Estados Unidos são os cartéis mexicanos. Mas, de acordo com José Luis Vasconcelos, vice-procurador-geral da república do México em 2006, são os colombianos que detêm o controle do tráfico. Em 19 de janeiro deste ano, o governo mexicano divulgou a extradição de quinze supostos criminosos, entre os quais importantes chefões. Entre janeiro e agosto de 2007, o número de extradições chegou a 64, ainda que a controversa medida tenha violado o limite legal estabelecido.
Para enfrentar o desafio, os departamentos governamentais encarregados de enfrentar o comércio de entorpecentes mudaram o esquema de operação. A estrutura da Procuradoria-Geral da República se modificou. A participação das forças armadas aumentou, inclusive com a criação de áreas especializadas. Foi formada uma Polícia Federal Preventiva e as autoridades dos governos estaduais e municipais agora têm funções maiores na luta contra o narcotráfico. A cooperação e o intercâmbio de informação com a comunidade internacional cresceram. Simultaneamente, modificaram-se o sistema de justiça penal e os processos penais. Mais recursos humanos, materiais e financeiros foram alocados. Contudo, os resultados deixaram a desejar. Armados de dinheiro e chumbo, os narcotraficantes penetraram significativamente em áreas-chave do Estado mexicano.
O muro virtual
George W. Bush descreveu a fronteira com o México como “perigosa” e anunciou a construção de um novo muro. “Temos uma cerca, mas vamos ter uma barreira virtual quando trouxermos tecnologia aos melhores agentes para proteger a fronteira, pela qual cruzam tanto as almas inocentes simplesmente em busca de trabalho quanto os que tentam passar drogas” [5]. Para erguer esse novo muro, Washington gastará 139 milhões de dólares. Aviões sem piloto, câmeras infravermelhas e 12.500 agentes de fronteira vigiarão o território do país da Estátua da Liberdade. Uma barreira de doze quilômetros será construída na cidade de San Diego; outras cidades serão protegidas com alambrados.
A nova barreira é parte de uma política que faz da questão migratória um assunto de segurança nacional e dos que não têm documentos, criminosos. Nos últimos treze anos, desde que entrou em funcionamento a chamada “Operación Guardián”, mais de 4 mil mexicanos sem documentos foram mortos ao tentar entrar nos Estados Unidos. Afogados, ou mortos de sede e calor no deserto, muitos cadáveres nem ao menos alcançam a dignidade de ter um nome e constituem apenas mais uma cifra na contabilidade de vítimas. Outros morrem de forma diferente. Como José Alejandro Cruz, abatido a tiros. Seu assassino foi um agente da Patrulha Fronteiriça, em El Paso, Texas, em 8 de agosto último. Ele tinha 23 anos de idade e era operário do setor têxtil. Seu crime: estar sem passaporte e reclamar a soltura de uma mulher prestes a ser deportada, detida pelos guardas.
O México, assegura o Banco Mundial em seu Relatório mundial 2006: igualdade e desenvolvimento (no qual, provavelmente por modéstia, não reconhece a enorme responsabilidade que detém na questão), é a nação líder em exportação de mão-de-obra no mundo: 2 milhões de pessoas no qüinqüênio 1995-2000. A média anual de imigrantes sem documento que se dirigem aos Estados Unidos é de quase meio milhão.
O caso de José Alejandro Cruz é mais um exemplo da paralisia do governo mexicano na hora de defender seus conterrâneos nos Estados Unidos. A Iniciativa Mérida, na verdade, pretende que esse “trabalho sujo” seja feito do lado mexicano. A mais de 3 mil quilômetros de distância da fronteira com os Estados Unidos, em Tenosique, Tabasco, guatemaltecos, hondurenhos e salvadorenhos recebem da polícia mexicana um tratamento similar ao que os mexicanos padecem nos Estados Unidos. Em 14 de agosto último, elementos da Polícia Federal Preventiva e agentes de migração, com o apoio do exército, investiram contra cerca de 3 mil centro-americanos. Estes encontravam-se encalhados em comunidades como Faisán Vía, porque a ferrovia Chiapas-Mayab suspendeu as atividades, após a empresa Genesee & Wyoming ter decretado a falência da linha. Os agentes de migração atearam fogo às pequenas tendas onde os indocumentados acampavam, ao mesmo tempo em que atiravam para evitar que fugissem. Os detidos foram espancados e suas escassas propriedades, furtadas. O drama dos imigrantes centro-americanos é mais grave do que o vivido pelos mexicanos nos Estados Unidos. Antes de chegar a seu destino final, têm de atravessar o México, sofrer extrema penúria, a extorsão policial e expor-se a assaltos e estupros.
Os conflitos armados na região, os efeitos devastadores dos furacões Match e Stan registrados em 1998 e 2005 e a crise dos preços do café a partir de 1989 levaram ao deslocamento de refugiados para o México. Entre 2000 e 2006, foram expulsas do México mais de 1,2 milhão de pessoas. Pelo menos 314 imigrantes de Guatemala, El Salvador e Honduras morreram este ano ao cruzar o México ou dentro dos Estados Unidos.
Em sua fronteira sul, o governo mexicano já faz o trabalho sujo para a administração Bush. Ele se converteu na polícia deste último: manda para a prisão os que prestam ajuda aos imigrantes, enquanto seus guardas investem sobre os indocumentados da América Central. Nisso consiste a Iniciativa Mérida: intensificar e aperfeiçoar o trabalho sujo nas duas fronteiras, mantendo o problema, na medida do possível, fora do território americano.
Militarização da política
Felipe Calderón deu início ao mandato de seis anos, em 2006, com uma parada militar. Transcorridos onze meses desde que o novo inquilino do palácio de Los Pinos assumiu o cargo, o que se destaca na administração presidencial é o gosto pelos uniformes militares, as fanfarras e os atos públicos, tendo as forças armadas por pano de fundo. No último 3 de janeiro, em Apatzingán, durante sua primeira aparição pública do ano, Calderón se fez retratar com uniforme de campanha, um quepe militar de cinco estrelas e o escudo nacional.
Acossado por manifestações civis que contestam seu triunfo eleitoral, o presidente mexicano deseja romper o isolamento social e a falta de legitimidade usando como pretexto a guerra ao narcotráfico. Desde o início de seu mandato, Calderón tem tentado fazer do exército seu principal sustentáculo, transmitindo mensagens de autoridade e disciplina. Cerca de 24 mil soldados e policiais federais foram enviados a nove estados para enfrentar os cartéis. A medida, ainda que eficaz em fazer crer à opinião pública que o enfrentamento do problema vai fundo, teve pouquíssimos efeitos práticos relevantes.
Decerto a guerra contra o narcotráfico está ocorrendo, mas não se trata apenas de um choque entre o Estado e o crime organizado, e sim de um grave confronto dentro do próprio Estado. Exemplo: ao chegar à zona de operações, a primeira coisa a ser feita pelos militares que participam de ações contra os cartéis é deter e desarmar a polícia. Isso constitui apenas uma pálida amostra do grau de penetração do narcotráfico no aparelho institucional, sendo que nem o exército está ileso. A guerra, sem dúvida, foi claramente utilizada para tentar calar as expressões de descontentamento popular.
Além do mais, a capacidade do exército foi questionada pelo secretário da Defesa. Em fins de outubro último, o general Guillermo Galván advertiu os integrantes da Comissão de Defesa da Câmara dos Deputados que os equipamentos e materiais militares das forças armadas estão obsoletos. Segundo ele, as únicas coisas que ainda prestam são as armas e os veículos e aviões que são vistos nos desfiles militares de 16 de setembro. As comunicações do exército estão atreladas à Telmex e a satélites privados. “Se alguém quiser, nos espiona”, advertiu Galván, que solicitou um aumento de 3,1 milhões de dólares no orçamento do exército para comprar aeronaves, renovar a frota de Hummers e trocar os radares, que atualmente só funcionam três horas por dia [6].
Reformas de segurança
O Programa de Cooperação contra o Crime Organizado, também conhecido como Iniciativa Mérida, guarda vínculos com três instâncias de cooperação regional: a Aliança para a Segurança e a Prosperidade da América do Norte (Aspan); o Comando Norte e o Plano Antinarcóticos da Fronteira Sudoeste.
A Aspan procura estabelecer uma aliança estratégica regional para fomentar a competitividade e a segurança da região. Seus antecedentes são o Tratado de Livre-Comércio para a América do Norte (TLCAN, México, Estados Unidos e Canadá) e a proposta de instrumentalizar um TLCAN suplementar.
Até o momento, foram efetuados três encontros no âmbito da Aspan. Suas Declarações Conjuntas estabelecem compromissos para o aperfeiçoamento da segurança na fronteira, no espaço aéreo e nas águas territoriais, a criação de um modelo comum para enfrentar ameaças extrarregionais e alianças em matéria de informação e inteligência. Desde o primeiro relatório, foi levantada a necessidade de um acordo trilateral na questão da segurança.
Em 2002, no contexto da guerra contra o terrorismo, os Estados Unidos procederam a uma de suas maiores reformas no âmbito da segurança. Entre as mudanças operadas encontra-se o estabelecimento do Comando Norte, as modificações no Centro de Comando das Forças Conjuntas e a fusão de comandos estratégicos e espaciais. O Comando Norte tem como antecedente um acordo firmado com o Canadá, em virtude do qual se criou o Comando Sul, responsável por proteger a zona nos planos comercial, de vigilância fronteiriça, de colaboração tecnológica e informativa e de coordenação dos serviços de inteligência e espionagem.
Em 2002, as forças armadas mexicanas determinaram que não se envolveriam no Comando Norte. Não obstante, recebem treinamento militar em Fort Bragg e Fort Benning, nos Estados Unidos. A força aérea conseguiu tecnologia para o desenvolvimento de uma plataforma de vigilância aérea e a marinha obteve contratorpedeiros.
Diversos analistas têm apontado que, como resultado dessa influência, o México criou um aparato policial à semelhança do FBI, formou corpos especiais do exército e estabeleceu instrumentos legais como a Lei de Segurança Nacional.
O Plano Antinarcóticos da Fronteira Sudoeste foi elaborado por um grupo subordinado ao Departamento de Segurança Interna, a Divisão Antinarcóticos e o Departamento da Justiça. Embora funcionando desde 2006, sua existência apenas foi levada a público em outubro deste ano. Entre suas prioridades encontra-se estabelecer um acordo para que oficiais americanos abordem embarcações com a bandeira mexicana que se encontrem em águas internacionais sem a necessidade de uma autorização específica do governo mexicano. Bem como fixar um programa de monitoramento aéreo da fronteira, em suspenso pela falta de um acordo mútuo relativo à situação dos operadores.
Um relatório do Congresso dos Estados Unidos indica que a operação e a estratégia do plano não haviam sido submetidas à consulta do México. Mesmo assim, formaliza uma queixa do Departamento do Tesouro quanto aos empecilhos que a lei mexicana impõe às autoridades norte-americanas para o bloqueio de bens financeiros. Menciona ainda um conjunto de recomendações da divisão de narcóticos da embaixada americana no México, concordando com as delineações da Iniciativa Mérida: assistência em infra-estrutura, treinamento, coordenação militar e apoio aéreo para apreensões e monitoração. Finalmente, estabelece a prioridade central do Pentágono: a participação do exército mexicano em um esquema de cooperação que passe da fase atual de treinamento e disposição de equipamentos para a de coordenação, que no meio é conhecido como interoperabilidade dos corpos militares [7].
[1] La Jornada, 23 de outubro de 2007.
[2] El Universal, 23 de outubro de 2007.
[3] Simón Vargas Aguillar, “¿Narcoestado o auge del narcotráfico?”, La Jornada, 23 de setembro de 2006.
[4] Collen W. Cook, Mexico’s Drug Cartels, CRS Report for Congress, Washington, 16 de outubro de 2007.
[5] La Jornada, 30 de novembro de 2005.
[6] La Jornada, 10 de outubro de 2007.
[7] Report to Congressional Requesters. Drug Control”, United States Government Accountability Office (GAO), Washington, agosto de 2007.